O texto abaixo é uma tradução do editorial de 3 de abril 2020 do conhecido diário internacional Financial Times, sediado em Londres. O artigo está disponível em https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca
Na tradução grifamos a última frase.
Note-se que o texto não é 100% aplicável ao Brasil, pois o Covid 19 infelizmente não forjou aqui uma unidade de propósitos na sociedade como um todo: no nosso país uma crise política se soma às de saúde e da economia.
O vírus expõe a fragilidade do contrato social
Precisamos de reformas radicais para forjar uma sociedade a serviço de todos
Se existe um lado positivo na pandemia do Covid-19 é ter ela injetado um senso de união em sociedades polarizadas. Mas o vírus, e as duras medidas econômicas para combatê-lo, também iluminam as desigualdades existentes – e até criam novas. Além de derrotar a doença, o grande teste que todos os países enfrentarão em breve é saber se os sentimentos atuais, de unidade de propósitos, moldarão a sociedade após a crise. Como os líderes ocidentais aprenderam na Grande Depressão e após a Segunda Guerra Mundial, ao exigir o sacrifício coletivo deve-se prover um contrato social que beneficie a todos.
A crise atual está revelando como muitas sociedades ricas estão distantes desse ideal. Assim como a luta para conter a pandemia mostrou o despreparo dos sistemas de saúde, a corrida dos governos para evitar as falências e o desemprego em massa evidenciou a fragilidade das economias de muitos países. Apesar dos apelos inspiradores à mobilização nacional, não estamos realmente unidos nesse compromisso.
As repercussões econômicas do confinamento estão impondo o maior custo para os que estão mais fragilizados. Do dia para a noite, milhões de empregos e meios de subsistência foram perdidos nos setores de hotelaria, lazer e afins, enquanto profissionais da área do conhecimento, bem remunerados, geralmente enfrentam só o incômodo de trabalhar em casa. Além disso, os que têm salários baixos mas ainda podem trabalhar estão arriscando suas vidas – como os cuidadores e os técnicos do setor de saúde, bem como os repositores de estoques, motoboys e faxineiros.
O extraordinário apoio orçamentário dos governos à economia, embora necessário, de certo modo tornará as coisas piores. Os países que permitiram o surgimento de um mercado de trabalho irregular e precário estão tendo muita dificuldade para canalizar ajuda financeira às pessoas com ocupações tão inseguras. Enquanto isso, um amplo afrouxamento monetário praticado pelos bancos centrais vai ajudar os que já possuem ativos valiosos. Tudo isso em uma conjuntura onde serviços públicos subfinanciados desgastam-se sob o peso das políticas para aplacar a crise.
A maneira como combatemos o vírus beneficia uns à custa de outros. As vítimas do Covid-19 são principalmente os idosos. Mas os mais sacrificados pelo confinamento são os jovens e ativos, que devem interromper sua educação e abrir mão de uma renda preciosa. Os sacrifícios são inevitáveis, mas toda sociedade deve demonstrar como compensará aqueles que carregam o fardo mais pesado do esforço nacional.
Precisarão ser colocadas em discussão reformas radicais, que revertam a orientação política predominante das últimas quatro décadas. Os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Devem considerar os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e procurar tornar os mercados de trabalho menos precários. A questão redistributiva estará novamente na agenda; os privilégios dos mais velhos e ricos serão questionados. As políticas até recentemente consideradas excêntricas, como renda básica e impostos sobre a riqueza, terão que ser observadas.
As quebras de paradigmas inerentes às políticas que os governos estão aplicando para sustentar as empresas e a renda durante o confinamento são bem comparadas com as da economia de guerra, algo que os países do ocidente não experimentaram durante sete décadas. E essa analogia vai mais longe.
Os líderes que venceram a guerra não esperaram pela vitória para planejar o que viria pela frente. Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill publicaram a Carta do Atlântico, estabelecendo os fundamentos para as Nações Unidas, em 1941. O Reino Unido publicou o Beveridge Report, seu compromisso com um estado de bem-estar social, para todos, em 1942. Em 1944, a conferência de Bretton Woods forjou a arquitetura financeira do pós-guerra. Esse mesmo tipo de visão de futuro é agora necessário. Além da guerra da saúde pública, os líderes que merecerem essa designação se mobilizarão para conquistar a paz.